Por que o machismo cria barreiras para as mulheres na tecnologia

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O futuro está sendo escrito em linhas de código. E o público feminino, apesar de usuário de apps, redes sociais e dispositivos digitais, não participa da produção da tecnologia. Precisamos falar sobre os desafios das mulheres na área e o que fazer para aumentar sua participação.

Bonecas X computadores

Problema cultural que começa na infância

Menina criança brincando com carrinho de boneca

Pense rápido: qual era seu brinquedo favorito? É provável que, caso você seja mulher, a resposta seja boneca ou panelinhas. Se você é homem, possivelmente respondeu à pergunta lembrando de videogames ou computadores. Essa divisão, considerada natural por muitos, reflete estereótipos de gênero construídos historicamente, que delegam às garotas, desde cedo, tarefas e interesses relacionados à esfera do cuidado e ao âmbito privado. “Não podia brincar com meus primos e irmãos. Era presenteada com bonecas e objetos cor-de-rosa, que eu detestava", conta a analista de sistemas Larissa Pereira Gambale, 22 anos. Já a designer de produto Lucía Salamanca, 27 anos, cansou de ouvir: “você não pode ser igual aos meninos”, “olha, ralou o joelho...Parece moleque!”, “Tente ser mais feminina…”.

Apesar de ter sido desbancada pela ciência, ainda persiste a ideia de que razões biológicas determinam os caminhos distintos de meninos e meninas. De acordo com essa percepção, a mulher teria uma habilidade “natural” para atividades que exigem atenção e afeto, mas não racionalidade, atributo considerado masculino. Existem diferenças sutis no tamanho e na composição dos cérebros masculino e feminino, é verdade. A relação entre elas e o comportamento de ambos, entretanto, continua desconhecida. Vale lembrar que a estrutura e a função cerebral mudam em resposta à experiência, de modo que quaisquer diferenças podem relacionar-se a diferenças em sua socialização e educação. "A maneira como nossa sociedade pensa e define o que é ser mulher e o que é ser homem tem relação direta com o desenvolvimento de suas habilidades e competências", diz a socióloga Bárbara Castro, autora de uma pesquisa de doutorado que investigou a presença feminina em TI.

Tal divisão repercute nos modos de ser de homens e mulheres, influenciando escolhas futuras, inclusive as profissionais. Não por acaso, é incomum ver meninas que se identifiquem desde cedo com as carreiras tecnológicas e das ciências exatas. Em seu estudo, Bárbara descobriu que todas as suas entrevistadas buscavam uma justificativa de interesse pela área amparadas na inspiração em alguém próximo que havia escolhido essa carreira e lhes mostrado como ela poderia ser interessante. Já os homens, quando perguntados sobre como e quando se interessaram por TI, respondiam que sempre gostaram de tecnologia e máquinas. "É um caminho que para eles se apresenta como natural. Para elas, algo a ainda ser desbravado", diz Bárbara.

“Minha família até tentava direcionar minhas atividades para coisas mais femininas, mas eles sempre apoiaram que eu explorasse o que quisesse. Gostava de desmontar as bonecas para, por exemplo, tirar o motorzinho e fazer um ventilador.”

Tatiane F., 36 anos

Segundo a pesquisadora, essa construção atravessa gerações. As feministas inglesas, por exemplo, já demonstraram como se estabeleceu uma relação entre tecnologia e masculinidade historicamente. “Quando, na revolução industrial, no século 19, separa-se o trabalho produtivo do espaço da casa e os homens é que passam a atuar mais massivamente no trabalho industrial, eles é que manipulam as máquinas, as desenvolvem e as aperfeiçoam”, continua ela.

A associação entre tecnologia e masculinidade continua a distanciar as meninas de TI. Elas sofrem preconceito de amigos, colegas e da sociedade ao fazer escolhas atreladas ao universo masculino. “Muitas vezes, são acusadas de serem homossexuais, o que não deveria ser um problema em si”, finaliza Bárbara. “Meu pai me proibia de utilizar qualquer brinquedo masculino. Certa vez, ganhei um pião e ele jogou fora. Achava que eu pudesse virar ‘sapatão’!. Quando decidir ir para a faculdade de TI, por sorte ele não sabia o que era”, conta Tuany Fortunato, 26 anos. E o que dizer do estereótipo do programador inteligente, mas sem muitas habilidades sociais, que vara noites escrevendo códigos? “É difícil se identificar com algo que não somos”, diz Sílvia Amélia Bim, professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) e uma das coordenadoras do Emílias - Armação em Bits, projeto que visa incentivar a tecnologia como opção de carreira para meninas, além de apoiar as que já estão no ensino superior.

O processo de masculinização da informática, mais precisamente, a figura do geek anti-social, se desenvolveu na década de 1960, a partir da instituição de programas formais da disciplina, de revistas e sociedades profissionais e programas de certificação. Ou seja, tem pouco a ver com habilidades intelectuais de origem biológica, mas com corporativismo. Quem conta essa história é Nathan Ensmenger, professor da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, no livro The Computer Boys Take Over: Computers, Programmers, and the Politics of Technical Expertis (sem tradução no Brasil).

Ao mesmo tempo, novas ferramentas de contratação - incluindo as aparentemente objetivas - reforçaram a presença masculina na área. Os testes privilegiavam problemas matemáticos, cuja resolução estava disponível em associações e organizações universitárias de programadores. Um outro tipo de avaliação, o perfil de personalidade, inclinou-se ainda mais para os candidatos do gênero masculino. Com base em uma série de perguntas, elaboradas por recrutadores, tais provas procuraram identificar os melhores, tendo como referência os traços de personalidade de profissionais de colarinho branco (funcionários de escritório, advogados, contadores, por exemplo), com uma distinção: o funcionário ideal tinha "desinteresse nas pessoas" e não gostava de "atividades envolvendo uma interação pessoal".

E foi assim que, a informática, tema de uma reportagem da revista Cosmopolitan que, em 1967, encorajava as mulheres a aderir à área, virou terreno masculino.

Matéria de jornal entitulada Computer boys com cosmopolitan de Abril de 1967

A ideia de que muitas das profissões de informática eram historicamente comuns para as garotas e de fato já foram ocupações 'femininas' parece extraordinária, se não inacreditável. “E, no entanto, uma compreensão histórica de como as profissões de computação adquiriram sua identidade de gênero, como elas eram "feitas masculinas" é fundamental para qualquer tentativa de enfrentar o desequilíbrio atual", escreve Ensmenger.

Elas fizeram história na tecnologia

Diferentemente do que costumamos pensar, a evolução da área está repleta de exemplos de mulheres que tiveram contribuições fundamentais. Navegue na linha do tempo para conhecê-las.

A escola e a naturalização dos estereótipos

"Não levo jeito para matemática" e outros mitos que afastam as garotas

Menina em idade de escola fugindo de números

Nosso modelo de educação tampouco ajuda a desconstruir noções preconcebidas que ganham espaço ainda na infância, com a dicotomia entre brincadeiras e modos de ser menino e menina. Na escola, essa separação continua a influenciar as futuras escolhas delas. Um estudo publicado em 2016 pela Associação Americana de Pesquisas Educacionais mostra que a disparidade de performance começa a surgir na Educação Infantil, como reflexo dos estereótipos culturais.

“Você tem certeza que quer estudar essa faculdade? Não sabemos se você consegue.”

pais de Lucía S., 27 anos

Os pesquisadores acompanharam dois grupos distintos: um de 5.000 crianças, que entrou no jardim de infância em 1998, e outro de mais de 7.500 integrantes, em 2010. Eles observaram que a diferença nas habilidades matemáticas não mudou muito nas duas amostras, que ingressaram na pré-escola separados por 12 anos. Inicialmente, ambos tinham habilidades matemáticas iguais. Mas a disparidade logo começou a ser identificada, e a partir da metade do ano havia mais meninos que meninas no grupo de alunos com melhor desempenho. Chegando na terceira série, a diferença se difundiu, particularmente entre quem tinha melhor desempenho escolar.

O estudo também mostrou que os professores consideraram a performance das alunas inferior a dos alunos, mesmo que elas tivessem notas idênticas às deles. As expectativas mais baixas em relação às garotas podem influenciar as habilidades futuras delas de várias maneiras. O medo e a ansiedade podem ser um impedimento para aprender. Nos anos iniciais do ensino fundamental, onde a maioria dos docentes é do gênero feminino, a ansiedade delas próprias em relação à matemática traz consequências para o desempenho das meninas, influenciando as crenças das pequenas sobre quem é bom na disciplina. "Muitas escolhem não prosseguir carreiras em ciência, tecnologia e engenharia porque não têm a confiança em sua capacidade de se destacar em Matemática, apesar de ter capacidade e habilidades para fazê-lo", diz uma das autoras do estudo, Sian Beilock, professora do departamento de psicologia da Universidade de Chicago, em entrevista à Programaria.

Dificuldades em matemática

Meninas – mesmo as que vão melhor – se sentem menos confiantes em matemática. 2 a cada 3 meninas, contra 1 em 2 meninos.

Gráfico de preocupação feminina

meninas preocupadas em enfrentar dificuldades em matemática

Gráfico de preocupação masculina

meninos preocupados em enfrentar dificuldades em matemática

Fonte: ABC da Igualdade de Gêneros na Educação: Aptidão, Comportamento e Confiança

Outro trabalho, realizado por pesquisadores das universidades de Nova York, Princeton e Illinois, também nos Estados Unidos, investigou o comportamento de crianças de 5, 6 e 7 anos em relação a suas habilidades intelectuais. Com 5 anos, elas foram convidadas a ouvir uma história sobre uma pessoa “muito, muito inteligente”, sem qualquer pista sobre o gênero do protagonista. Ao serem perguntadas sobre quem seria tal pessoa, escolheram alguém do mesmo sexo. A partir dos 6 anos, pelo menos para as meninas, essa identificação começa a diminuir.

Os estudos do psicólogo Andrew Meltzoff, codiretor do Instituto de Aprendizado e Ciências do Cérebro da Universidade de Washington, apresentam mais evidências sobre o poder dos estereótipos culturais no aprendizado das crianças. A pesquisa aponta dados parecidos: “Muito cedo, as garotas incorporam falsas concepções de que não são boas em Matemática”, escreve os autores no artigo Estereótipos de Gênero e Matemática em Crianças da Escola Primária.

E mais: o espaço físico pode contribuir para projetá-los. Se a sala tinha pôsteres de Jornada nas Estrelas e estátuas de Spock, em vez de itens neutros, menos garotas do ensino médio queriam estar naquele ambiente. Usando análises estatísticas, Meltzoff descobriu que as elas sentiam não "pertencer" a esse lugar.

Informações semelhantes vêm da Universidade de Tel Aviv, em Israel. Os autores realizaram o seguinte experimento, com três grupos de estudantes, da 6ª série até o fim da escolaridade: cada um fez duas provas idênticas, e elas foram corrigidas por dois times de professores: um que sabia os nomes dos alunos (capaz, portanto, de deduzir o sexo deles) e um que corrigiu provas anônimas. As correções foram desiguais mesmo quando as respostas eram iguais.

Viés inconsciente: estudos mostram que professores tendem a dar notas melhores para meninos, mesmo quando a performance em relação a meninas é semelhante.

Edith Sand e Victor Lavi

O time que sabia os nomes deu notas mais altas aos garotos. Já a correção anônima deu notas maiores às garotas. Mas esse efeito só foi observado nas disciplinas de Matemática e Ciências – as provas de Inglês, por exemplo, receberam avaliações parecidas. Os pesquisadores concluíram que os docentes superestimaram as capacidades dos meninos, em comparação às meninas. A prática teve consequências de longa duração: poucas jovens demonstraram interesse pelas áreas de Ciências Exatas quanto o grupo estava prestes a se formar. "Nossos resultados sugerem que o comportamento tendencioso dos professores na fase inicial da escolaridade tem implicações nos ganhos salariais de longo prazo. Esse impacto é maior para crianças de famílias nas quais o pai é mais educado que a mãe e em garotas de nível econômico mais baixo", escrevem Edith Sand e Victor Lavy no artigo.

Os relatórios Meninos e Meninas estão Igualmente Preparados para a Vida?, e ABC da Igualdade de Gêneros na Educação: Aptidão, Comportamento e Confiança, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), batem na mesma tecla. O primeiro revela que a confiança dos alunos em sua capacidade e sua motivação para aprender são fundamentais em seu desempenho em disciplinas acadêmicas. Também são valiosos atributos para enfrentar desafios e aproveitar oportunidades quando saem da escola.

As percepções das meninas sobre si mesmas determinam o quão bem elas se motivam e perseveram ao enfrentar dificuldades para aprender matemática. Também influenciam as escolhas delas sobre cursos e atividades extracurriculares. O segundo mostra, a partir dos dados do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), que elas são melhores que os meninos em leitura, em todos os países examinados. Já eles se destacam em matemática, apresentando melhores resultados na disciplina em seis de cada 10 países.

“Já passei por situações em que professores (homens) me ignoraram em relação a dúvidas e ideias que eu tinha sobre as matérias, mas para meus colegas eles estavam sempre disponíveis”

Sara M., 20 anos

Mais do que ser uma evidência sobre a diferença entre habilidades natas de meninos e meninas, os dados mostram como as narrativas culturais afetam seus caminhos. A discrepância varia consideravelmente entre os países. Nas nações com os maiores níveis de igualdade de gênero, a diferença no desempenho matemático desaparece. Na Islândia, por exemplo, as mulheres superam os homens em matemática. Segundo as descobertas de uma equipe de pesquisadores liderada por Joan Chiao, da Universidade Northwestern, nos Estados Unidos, isso tem a ver com a sensação de empoderamento delas. A pontuação feminina em testes matemáticos aumentou quando elas lembraram, pouco antes, de experiências em que exerceram poder.

Os estereótipos de gênero não se restringem à matemática, impactando o gosto pela leitura e até o tipo de livro preferido. Na obra Psicologia Diferencial, de 1974, a americana Anne Anastasi, da Universidade de Columbia, pesquisou os interesses demonstrados por meninos e meninas, chegando à conclusão de que as preferências são marcadas, principalmente, por fatores culturais presentes na forma como são criados e que as crianças incorporam a influência cultural e desenvolvem um conceito nítido dos papéis que a sociedade atribui a homens e mulheres. Enquanto os meninos preferem temas relacionados a aventuras, viagens, explorações, e textos informativos (como manuais), as meninas gostam de ficção, com histórias de amor e romances, contos que tenham crianças como protagonistas e enredos que envolvem a vida em família.

Leitura por diversão

As meninas são melhores leitoras que os meninos em todos os países.

Gráfico de leitura feminina

Meninas lêem por diversão

Gráfico de leitura masculina

Meninos lêem por diversão

Fonte: ABC da Igualdade de Gêneros na Educação: Aptidão, Comportamento e Confiança

Essa lógica atravessa toda a trajetória educacional das garotas, com desdobramentos em suas escolhas futuras, incluindo a profissão. Ao fim da educação básica, uma parcela ínfima delas deseja estudar tecnologia e áreas correlatas, como mostram as matrículas das principais universidades do país. Na Unicamp, por exemplo, só 12,3% dos aprovados no vestibular de Ciências da Computação em 2016 eram mulheres. "Você tem certeza que quer estudar nessa faculdade? Não sabemos se você consegue", ouviu Lucía Salamanca, 27 anos, de parentes. O pai de Larissa Pereira Gambale foi mais direto. “Quando passei na faculdade de análise de sistemas, ele não queria que eu seguisse essa área. ‘Você não vai trabalhar no meio de homens. Faça administração’.”

Curiosamente, elas são maioria no Ensino Superior, de acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Representam 55% do total de 2 milhões e 125 mil alunos matriculados em cursos diurnos e noturnos. Na conclusão dos estudos, 491 mil alunas formaram-se, enquanto 338 mil homens terminaram seus cursos em 2013.

Carreira em tecnologia

Metade dos pais no Chile, Hungria e Portugal esperam que seus filhos sigam uma carreira nas áreas tecnológicas, enquanto só 20% veem as filhas fazendo o mesmo.

Gráfico de tecnologia feminina

20% dos pais veem as filhas na carreira

Gráfico de tecnologia masculina

metade dos pais veem as filhos na carreira

Fonte: ABC da Igualdade de Gêneros na Educação: Aptidão, Comportamento e Confiança

Chama atenção, porém, que a preferência feminina ainda recaia sobre as áreas de humanas e saúde. Enfermagem, por exemplo, tem 84,4% de alunas. Historicamente, as matrículas das mulheres no ensino superior estiveram concentradas em determinadas áreas, como ciências humanas, letras e artes, reforçando a divisão sexual do trabalho. Já entre o público masculino, os dados mostram que as áreas de maior inserção estão ligadas às exatas, como as engenharias e cursos relacionados à tecnologia, como ciências da computação, que chega a ter 85,4% de homens.

Matrículas no Ensino Superior

Mulheres

Homens

Gráfico de mulheres matriculadas em Ciência da Computação
Gráfico de mulheres matriculadas em Engenharia
Gráfico de mulheres matriculadas em Artes
Gráfico de mulheres matriculadas em Psicologia
Gráfico de mulheres matriculadas em Direito
Gráfico de mulheres matriculadas em Medicina
Gráfico de mulheres matriculadas em Pedagogia

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Fonte: Gênero e Número

A inclusão das garotas nas profissões científicas tem-se dado em ritmo mais lento do que em outras áreas e há uma tendência de as ciências exatas – matemática, física, engenharias– atraírem relativamente poucas mulheres. Nos últimos anos, as brasileiras perderam representatividade nos cursos relacionados à computação. Em 2013, passaram a representar apenas 15,53% dos ingressantes, segundo o Censo da Educação Superior.

Na maioria das vezes, o ambiente universitário mostra-se pouco acolhedor, o que explica o aparente desinteresse e as altas taxas de evasão. “Antiquado e cruel”, na definição da programadora Camilla Falconi, 29 anos. A maioria dos colegas dela já tinha feito curso técnico, conhecia webdesign ou tinha tido acesso a códigos ou exercícios de lógica previamente. “Sem a mesma experiência quando entra no curso, você se sente incapaz, e muitas vezes quer desistir”, diz ela. Uma parcela significativa desiste de fato: 79% as mulheres que ingressam em formações relacionadas à área de TI abandonam a faculdade ainda no primeiro ano, segundo dados da Pnad. "Uma vez, fiz uma pergunta ao professor sobre algoritmos. Um menino disse que, se estivesse tão difícil pra mim, que eu fosse fazer balé", diz Lidiane de Paula, 30 anos, que estudou sistemas de informação. "Um professor ridicularizou uma colega de classe perguntando se ela era casada. Disse que ela deveria casar logo, pois quem continua solteira não é bem vista pela sociedade. Confrontei o professor, em uma sala em que 95% dos alunos eram homens, e disse que ter ou não ter um namorado ou marido não muda em nada nosso sucesso ou objetivos de vida. Depois, ele tentou confirmar o que tinha dito antes, tirando sarro do que eu havia acabado de dizer", conta Mariana Carvalho, 24.

Futura carreira

Quatro vezes mais meninos planejam seguir uma carreira profissional em engenharia ou informática.

Gráfico de carreira feminina
Gráfico de carreira feminina
Fonte: ABC da Igualdade de Gêneros na Educação: Aptidão, Comportamento e Confiança

Também são comuns os casos de estudantes que são ignoradas pelos professores e colegas. “Já passei por situações em que professores (homens) me ignoraram em relação a dúvidas e deias que eu tinha sobre as matérias, mas para meus colegas eles estavam sempre disponíveis”, diz Sara Maria Gonçalves, 20 anos, que estuda Sistemas de Informação. “Era menosprezada na sala de aula por gostar de me arrumar, passar batom, pintar as unhas. Já tive que ouvir que não precisava me arrumar tanto para ir a faculdade, que estava perdida e não sabia o que queria da vida e que fazia o curso só para passar o tempo”, diz Heloisa Frasão, 24 anos. Ela é uma das seis meninas de uma sala com aproximadamente 40 alunos. Já Juliana Neres, 21 anos, tinha interesse em se inscrever numa competição com um grupo de amigas. “Escutei de um colega do curso de análise e desenvolvimento de sistemas: ‘Vocês querem competir com um time de meninas ou com um time que vai ganhar?’”. “Um professor disse que ‘mulher não devia fazer computação’ e reprovou todas as alunas da turma”, diz Clarissa Xavier, 40 anos.

Exclusão e preconceito

Ambiente de trabalho que não acolhe a mulher

Mulher exluída de conversa entre homens no trabalho

Boas notas e canudo nas mãos não são garantia para uma jovem conseguir a primeira oportunidade. O ambiente masculino e muitas vezes pouco acolhedor acaba se tornando difícil para elas. É o que a pesquisadora Simone Strumpf, da Universidade de Londres chama de cultura "brogrammer", um neologismo entre "brother" e "programmer", que oscila entre confraria masculina e clube do bolinha. "Trata-se de um ambiente de trabalho que exclui as mulheres através de normas que estabelecem o comportamento ‘masculino’ - por exemplo, a linguagem sexista - e que reforçam os estereótipos das funções femininas", ela explica em entrevista à PrograMaria.

Uma série de exemplos confirma a fala da especialista. “Em geral, sou uma das poucas ou a única nos ambientes de trabalho. É comum ouvir comentários desagradáveis e depois algo do tipo ‘desculpa, não percebi que tinha uma garota aqui’”, conta Tamara Mendes, 27, que já passou várias outras saias justas. De um chefe escutou: “É difícil encontrar mulheres com seu potencial na área técnica”. Mas a pior situação ela viveu com um colega de trabalho. “Ao falar mal da prova de um candidato a estágio, ele disse ‘até as meninas ali conseguem fazer essa prova’, referindo-se a mim e mais uma colega.”

Segundo a pesquisadora Simone, há outras formas de exclusão mais sutis. Por exemplo, a expectativa de longas horas de trabalho que se chocam com outros compromissos familiares e da falta de promoções. “Homens costumam subir mais rápido na minha empresa. Ser mulher é sinônimo de trabalhar o dobro. ‘Brodagem’ é a palavra de ordem para crescer”, diz A. V., 24, que não quer se identificar. “Eu já cheguei a ouvir que deveria ser mais legal, mais doce, se quisesse ser promovida, pois os colegas não gostavam do meu jeito. Se eu fosse homem, seria considerada exigente, alguém em busca da melhor performance. Mas, como sou mulher, sou grossa, direta demais. É difícil precisar se impor constantemente, mostrar que é capaz, mas, ao mesmo tempo, precisar ser doce e fofa”, desabafa Paula M. “Já ouvi que não dava pra me imaginarem como gerente porque os caras ‘não iriam se submeter a uma mulher’ e fui direcionada a tarefas em que era preciso colaboração”, relata Tatiane Fernandes, 36 anos.

“Um ex-chefe me interrompeu pra explicar algo que eu havia acabado de explicar para ele. Em geral as pessoas não levam meus posicionamentos a sério porque acham que eu não sei do que estou falando”

Ju G., 28 anos

Mulheres negras sofrem duplamente. Além de masculino, o setor de tecnologia é quase exclusivamente branco. “Quando chego em eventos ou reuniões, alguém sempre pergunta se sou mesmo da área e se pretendo trabalhar com ‘esse cabelo’”, conta Sara. A maior dificuldade das afrodescentes ainda é o ingresso e a permanência na universidade, o que políticas públicas podem minimizar. “Quando estava para escolher o curso no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte, pesquisei sobre informática e lá descobri o que era programação. Comecei a cursar o médio-técnico e aí me apaixonei mesmo”, continua Sara, que se interessa por ciência, mecânica e eletricidade desde a infância, por influência do pai, que é pedreiro.

Outro fator determinante para a ausência das negras é a falta de referências. Nos Estados Unidos, apenas 2% da força de trabalho no setor de ciências e engenharia é formada por negras. No Brasil, esse dado nem existe. Alguns números ajudam a dimensionar o problema: entre os quase 100 mil bolsistas da área de exatas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) só 5,5% é composto por negras. Outro levantamento, realizado pelo Grupo de Gênero da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poligen/USP), indica que, em 120 anos, a instituição não formou nem dez negras. Já na lista de cientistas pioneiras no Brasil, criada pelo CNPq, nenhuma das citadas é negra. Ao circular por eventos e constatar que era uma das únicas, Silvana Bahia decidiu criar o PretaLab, iniciativa do Olabi que visa ampliar a representatividade de mulheres negras e indígenas na tecnologia. "Nunca achei que isso fosse para mim, mas aprender a programar me fez sentir capaz. Outras meninas precisam ser apoiadas", conta ela.

Ser ignorada na tomada de decisões da equipe também faz parte do pacote. "Certa vez, num emprego novo, alguns rapazes fingiam que eu não estava falando durante uma reunião. Para conseguir a atenção do grupo, tive que pedir ajuda a um colega, que falou o que eu queria dizer", continua Paula. "Uma vez, numa reunião, fiz o mesmo comentário duas vezes e fui ignorada. Explodi. Disse que eles não estavam me escutando. Comentário do chefe: 'Você quer um abraço? Parece tensa'", diz Lucía, 27 anos. "Sempre fui a única programadora nas equipes em que trabalhei. Volta e meia, alguém aparecia na sala pedindo algo de programação. Mas, quando eu estava sozinha na sala, pediam para eu anotar o recado", diz Georgia Catarina, 30 anos.

Isso sem contar casos mais graves de assédio moral e sexual. Exemplos cabeludos não faltam. Este ano, o Uber afastou seu principal executivo, o então CEO Travis Kalanik, após uma investigação interna sobre a cultura corporativa da empresa. A apuração teve início depois que uma engenheira de software denunciou que a direção da Uber tinha ignorado as suas queixas e as de outras companheiras sobre situações de assédio e sexismo por parte de seus superiores. Este ano, a empresa demitiu 20 empregados como consequência de uma segunda investigação sobre casos individuais de más condutas relacionadas a assédio sexual, psicológico e discriminação.

Clube do Bolinha

Consciente ou inconscientemente, a descrição dos postos de trabalho em TI reforça estereótipos. Abaixo, estão algumas reproduções de anúncios de vagas que utilizam linguagem associada ao gênero masculino e ilustrações e fotos apenas de homens.

Vaga 1 Vaga 1
Vaga 2 Vaga 2
Vaga 3 Vaga 3
Vaga 4 Vaga 4
Vaga 5 Vaga 5
Vaga 6 Vaga 6
Vaga 7 Vaga 7
Vaga 8 Vaga 8
Vaga 9 Vaga 9

Os desafios de quem segue na carreira

Salários menores, poucas oportunidades de crescimento e nichos femininos

Mulher em degrau abaixo de homem na carreira tecnológica

Quem segue em empresas de tecnologia se depara com as mesmas questões sexistas enquanto avança - ou não - na profissão. A diferença salarial entre os gêneros é um dos primeiros entraves, seguindo uma tendência observada em outros setores. As mulheres ganham 30% menos do que homens na área de TI, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, compilados por Bárbara Castro para o seu estudo. "Já descobri que um colega de equipe com a mesma qualificação e cargo ganhava o dobro do meu salário", diz a analista de segurança Vanessa Galli, 35 anos.

A diferença salarial já foi explorada em outras pesquisas, como as da economista americana Linda Babcock, da Universidade Carnegie Mellon, e autora do livro Women Don't Ask (sem tradução para o português). Uma de suas análises aponta que as mulheres ganham menos porque são menos propensas a negociar seus salários depois de uma oferta inicial. Os pesquisadores da equipe de Babcock conduziram o seguinte experimento: diziam aos participantes que eles poderiam ganhar de US$ 3 a US$ 10 para participar de um jogo. Depois do término, o pesquisador ofereceu US$ 3 e perguntou se esse montante estava correto, sem dizer que os participantes poderiam negociar e pedir mais. Se as pessoas pedissem mais, ganhariam o que pedissem até o limite de US$ 10. Os homens eram sete vezes mais propensos a pedir mais do que as mulheres. Para descrever a negociação, eles usavam metáforas como “ganhar um jogo”. Já elas, a descreviam como "ir ao dentista".

Outros estudos exploraram o que acontece quando ambos se comportam de forma assertiva nas negociações salariais. Quando se envolvem exatamente no mesmo comportamento, as mulheres são malvistas por não aceitarem as primeiras ofertas e pedirem mais. “Para nós, de forma geral, negociação significa conflito. Culturalmente, não somos estimuladas a cuidar de nossos interesses, mas a assumir o papel de cuidadoras”, diz Dani Botaro, sócia da ImpulsoBeta, uma empresa de inteligência de gênero que apoia corporações a implementarem ações de diversidade.

As políticas de cada empresa podem alimentar ou minar a ambição feminina. “Mulheres em posição de liderança, por exemplo, estimulam que outras funcionárias sigam esse exemplo”, continua ela.

“O que me incomoda (e isso acontece até hoje) são os comentários do tipo "vai lá e joga seu charme (pra conseguir algo)" ou "para você é mais fácil conseguir essa informação com ele (sugerindo que por ser mulher consigo algo se o outro for homem).”

Ana Paula

A organização do mercado brasileiro de tecnologia é outro grande problema. Cerca de 93% dos negócios são de pequeno e médio porte, que comercializam software e hardware para outras empresas. Isso cria uma dinâmica de faturamento por projetos, feitos um em seguida do outro ou de maneira concomitante para não perder clientes. O atendimento a diversos clientes faz parte da rotina dos profissionais do setor, com deslocamentos constantes internos e externos às cidades na qual se situa a sede de sua empresa.

Essa estrutura impõe rotinas de trabalho que envolvem prazos apertados, jornadas de 10 a 12 horas diárias, e trabalho extra em períodos noturnos, finais de semana e feriados. No fechamento do projeto e no teste do software, o que ocorre, em média, a cada 3 meses, os profissionais chegam a trabalhar 72 horas seguidas. Resultado: os homens, principalmente os solteiros e mais novos, são privilegiados, e as mulheres, sobretudo as que têm filhos, preteridas. “De uma maneira geral, as entrevistadas diziam que não poderiam ser mães atuando em TI. O trabalho em horas desreguladas não permite a elas participar da rotina de seus filhos, o que causa frustração e, muitas vezes, leva ao abandono da carreira”, diz Bárbara.

Em sua pesquisa, ela também descobriu que as mulheres tendem a ser afastadas dos cargos técnicos e da chamada área dura da TI, a programação, e ocupar vagas gerenciais ou nichos, como análise de sistemas, justamente onde se exige comunicação e conciliação de conflitos, papéis sociais tradicionalmente considerados femininos. “Disse que preferia a área de desenvolvimento. Mas, sem efetuar nenhum teste, me falaram: ‘Você leva mais jeito para fazer a documentação”, afirma desenvolvedora Ingrid Vaz, 26 anos.

Tal padrão foi seguido pelas 30 executivas entrevistadas por Bárbara e está relacionado à desconfiança das habilidades dessas profissionais. Algumas relataram assédio no ambiente de trabalho ou, ainda, se tornavam suspeitas de terem crescido na empresa em troca de favores sexuais, e não como consequência de sua capacidade.

A mulheres tendem a ser afastadas dos cargos técnicos e da chamada área dura da TI, a programação, e ocupar vagas gerenciais ou nichos, como análise de sistemas, justamente onde se exige comunicação e conciliação de conflitos, papéis sociais tradicionalmente considerados femininos.

Barbara Castro, pesquisadora

Essa desconfiança em relação à capacidade feminina encontra eco em uma série de exemplos concretos. “Sempre ouvi que mulher é boa para lidar com pessoas, não para escrever código”, conta Camilla Falconi. "Já houve situações em que meus colegas não me deixaram terminar a explicação por acharem que eu não estava entendendo a parte técnica", relata Mariana Carvalho, 24 anos, que atualmente faz mestrado em ciências da computação nos Estados Unidos. Já a instrutora de programação Vanessa T., 27 anos, teve um chefe que queria impor que ela trabalhasse com design contra sua vontade. Ela se queixa de não receber o devido crédito por suas capacidades na área de front-end, em que é especialista. "Quando precisam citar nomes, vejo meus colegas lembrarem até de pessoas que entraram recentemente na empresa, porém eu, que sou instrutora de cursos de front-end, sou raramente lembrada por esta habilidade."

Outros exemplos emblemáticos vêm de gigantes da tecnologia. O mais recente envolveu o Google. A empresa foi centro de um escândalo no Vale do Silício no começo de agosto de 2017. De forma anônima, o engenheiro James Damore escreveu um manifesto afirmando que existem causas biológicas por trás da desigualdade na indústria da tecnologia. O funcionário do Google acabou demitido, mas o episódio jogou mais lenha na fogueira.

Já o Facebook foi denunciado pelo jornal Wall Street Journal em maio de 2017. Dados coletados por um engenheiro da rede social revelaram que o código escrito por mulheres foi rejeitado muito mais frequentemente do que o de seus colegas homens. Os resultados desencadearam um debate sobre o preconceito de gênero entre os empregados mais valorizados da empresa: os que criam os recursos utilizados por quase dois bilhões de pessoas por mês. Para muitas engenheiras do Facebook, a descoberta confirmou suspeitas antigas de que sua codificação passava por análises mais minuciosas que a dos homens.

Como outras grandes empresas de tecnologia, como a Apple., o Google e Facebook têm lutado para aumentar a participação feminina e as minorias sub-representadas. As mulheres representam 17% das funções técnicas da rede social, de acordo com seu último relatório de diversidade. Mas, segundo a consultoria Accenture, a proporção delas em postos de trabalho de tecnologia cairá dois pontos percentuais até 2025 se nada for feito.

A interferência do viés de gênero também foi identificada por um trabalho da Universidade Politécnica Estadual da Califórnia. Os pesquisadores descobriram que os usuários do repositório de software GitHub aprovaram os códigos escritos por mulheres a uma taxa maior do que aqueles escritos por homens, mas apenas se a identidade delas não fosse revelada. “Nossos resultados sugerem que o preconceito existe, independentemente da competência delas”, escrevem os autores da pesquisa. Outro exemplo: uma pesquisa de Harvard, MIT e Universidade da Pensilvânia revelou que investidores tendem a considerar pitches narrados por homens mais persuasivos, lógicos e embasados em fatos que os de mulheres.

O outro lado da moeda: se elas se mostram confiantes, enfrentam resistência. “Já tive uma promoção negada porque o time de programadores (todos homens) não gostava da minha ‘agressividade’, palavras do líder de TI”, diz Alice Rangel, 29 anos. Ela não programa, mas tem experiência em startups de tecnologia e marketing, sua área de atuação. Alice também se sente preterida em eventos e premiações. "Observo que a frequência é predominantemente masculina", revela.

Por volta dos 30 anos, as mulheres experimentam um turbilhão: as pressões sociais se intensificam e elas passam a ser questionadas sobre maternidade. “Já fui desqualificada em vaga de emprego por ser casada e ainda não ter filhos. Mesmo falando que não tenho planos de engravidar, disseram que isso poderia acontecer e pediria licença”, conta Vanessa. “Nunca esconderam que minhas promoções eram delegadas a homens porque achavam que uma mãe não deveria ter certos cargos que exigiam viagens e horas extensas de trabalho”, diz Samanta Cristina Lopes, 44 anos, que trabalha com vendas e negócios na área de TI.

Como os exemplos mostram, a maternidade ainda é um tabu no mercado de trabalho. “Trata-se de um ranço cultural difícil de quebrar. Mas, cada vez mais pessoas busca propósito no que faz, e questiona paradigmas. A visão orientada estritamente pela redução de custos pode perder força”, diz Dani, do ImpulsoBeta.

Por que diversidade importa

A força de trabalho feminina em TI gera renda, inclusão e novos olhares sobre os produtos

Menina de costas em frente a uma alta escada

A participação das mulheres em cursos de tecnologia já foi considerada um direito, um ponto importante para combater a naturalização dos papéis de gênero e estimular ambientes de trabalho mais diversos. “Hoje, muito mais que um direito, é também uma necessidade para o desenvolvimento da área científica e tecnológica e do país que durante muito tempo deixou de receber a contribuição da metade da população”, diz Nanci Stancki da Luz, coordenadora do Núcleo de Gênero e Tecnologia (GETEC) da UTFPR. Afinal, o crescimento econômico sustentável depende da participação e envolvimento das mulheres em todas as áreas, particularmente em tecnologia, que gera novos postos de trabalho mesmo com crise econômica.

A tecnologia representa uma possibilidade, ainda, de geração de renda e de emancipação econômica, já que o setor paga mais que os que costumam empregar mão de obra feminina. Um relatório global da Organização Internacional do Trabalho (OIT), divulgado em 2017, mostrou que a economia brasileira pode expandir em até R$ 382 bilhões ao longo de oito anos se aumentar a inserção das mulheres no mercado de trabalho. Isso traria um incremento de cerca de 3% ao PIB e levaria ao aumento no poder de consumo de bens e serviços.

Já um estudo da consultoria estratégica McKinsey, que vem examinando a diversidade no local de trabalho há vários anos, analisou dados de empresas de diferentes áreas, no Canadá, América Latina, Reino Unido e Estados Unidos. A conclusão: a diversidade traz dividendos às empresas. Organizações com diversidade de gênero e de etnia têm retorno financeiro acima da média nacional.

“Ouvia dizer que a tecnologia não é para mulher. Resolvi descobrir o porquê e me apaixonei pela área”

Ingrid V.

O número de profissionais formados em áreas tecnológicas não atende à demanda crescente das empresas, cada vez mais informatizadas. “O Brasil ainda tem carência de profissionais da área tecnológica. A presença das mulheres ampliará a força de trabalho necessária para nosso desenvolvimento”, completa Nanci. Um estudo divulgado pela Softex aponta que o Brasil pode chegar a 2020 com um déficit de mão de obra qualificada em TI de 408 mil profissionais. Outro trabalho, The Network Skills in Latin America, encomendado pela Cisco a IDC, é ainda mais pessimista, estimando que tal déficit seria de 449 mil profissionais.

Outro ponto fundamental da participação feminina: trazer novos olhares e percepções, já que as mulheres se apropriariam da tecnologia como produtoras e não apenas consumidoras, como no quadro atual. Assim, elas teriam a oportunidade de resolver problemas próprios de sua condição, o que evitaria distorções como apps de saúde que não contemplam o ciclo menstrual, como o Health, da Apple, que só incluiu a funcionalidade depois de muita polêmica. “Hoje, temos recursos que não compreendem totalmente a diversidade do seu público consumidor e que podem, inclusive, deixar as mulheres mais vulneráveis a questões de segurança e privacidade”, explica Karen Figueiredo, professora da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), que investiga como as meninas decidem por determinada carreira.

Além disso, as mudanças promovidas pela tecnologia em diversas indústrias impõem às empresas o desafio de acompanhá-las. Inovação tecnológica tem sido palavra de ordem em todas as companhias. Assim, ter conhecimento em tecnologia é importante para qualquer profissional, não apenas aqueles que trabalham diretamente com TI. “Se você não souber programar, você será como uma das pessoas iletradas da Idade Média que foram educadas a pensar pelos padres letrados”, disse Tim O’Reilly, entusiasta do software livre para campanha do site Code.org.

Reprogramando a tecnologia

Mudança sistêmica que envolve empresas, poder público e organizações sem fins lucrativos

Circuitos ligando menina sentada sentada ao seu notebook no colo

O primeiro passo para resolver o problema da diversidade de gênero em tecnologia é desconstruir naturalizações do que é entendido como masculino ou feminino e "normalizar" a área como uma possibilidade de carreira para as mulheres. Fazer isso requer a articulação de várias esferas e atores. Uma boa notícia vem das organizações sem fins lucrativos: no Brasil, assim como no restante do mundo, o número de projetos para debater o tema e atrair as garotas para a computação cresce a passos largos. A Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR) acolhe o Woman@Comp. A UTFPR abraça iniciativas como o PyLadies e o projeto Emílias – Armação em Bits, apoiado pelo edital Meninas e Jovens Fazendo Ciências Exatas, Engenharias e Computação, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Já a Sociedade Brasileira de Computação (SBC) possui o programa Meninas Digitais, que organiza aulas de robótica, oficinas e minicursos sobre desenvolvimento web, jogos computacionais, construção de páginas pessoais, blogs e podcasting, além de palestras com a apresentação de casos de sucessos da participação feminina na área. “Procuramos fornecer informações de qualidade sobre a atuação profissional, incentivando as garotas a refletir sobre a pequena presença da mulher nessas áreas. Também buscamos obter dados sobre o processo de escolha profissional das jovens do ensino médio/técnico para nortear nossas ações futuras”, explica o coordenador Cristiano Maciel, da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Outro objetivo indireto é atuar na permanência das estudantes que já fazem cursos nesta área, envolvendo-as com a causa do Meninas Digitais. Além de projetos acolhidos por universidades, existem diversas iniciativas brasileiras de mulheres que resolveram agir sobre a questão: Reprograma, Minas Programam, InfoPreta, Maria Lab, Django Girls, Desprograme, WoMakersCode, Rails Girls, entre tantos outros coletivos.

“Em uma entrevista em uma empresa que estava me contratando, a psicóloga me perguntou porque eu tinha escolhido uma profissão tão masculina. Eu perguntei se existiam profissões ‘masculinas’ e ‘femininas’ e se ela sabia que o número de mulheres havia crescido. Ela ficou surpresa”

Sara C.

O poder público pode fazer sua parte concebendo e implementando políticas pontuais, em diversas áreas, a começar pela educação. São exemplos o redesenho dos currículos escolares e a introdução de disciplinas neutras (conteúdos de matemática sem exemplos que vinculem o aprendizado ao universo masculino, por exemplo), ensino de tecnologia desde a primeira infância, como as oficinas de robótica da creche da USP São Carlos, a sensibilização de docentes para as dinâmicas sociais de gênero e seus mecanismos de criação de desigualdades. “Consolidar uma educação que priorize a igualdade é fundamental. O processo de socialização das crianças deve ser repensado, pois não há sentido algum na reprodução da ideia de que há alguns brinquedos/cores/comportamentos adequados para meninos e outros para meninas”, defende Nanci.

Outras políticas públicas podem estimular a participação de mulheres na área tecnológica e reduzir as disparidades. São exemplos a criação de mecanismos de fiscalização das leis trabalhistas, em especial a obediência do limite de horas semanais trabalhadas e o fortalecimento de políticas sociais para o cuidado de crianças, a fim de apoiar a mãe trabalhadora.

A última ponta nesse esforço são as empresas, que devem construir espaços de trabalho que rejeitem o machismo, o sexismo, a misoginia e estimulem a igualdade de gênero. Uma vez que se formam nas universidades e entram formalmente na indústria, as meninas devem ser amparadas em seu ambiente de trabalho com políticas de recrutamento e retenção. “Não acho que temos apenas que trabalhar mais para alcançar a inclusão de que precisamos. Em vez disso, nossa sociedade exige uma mudança sistêmica em que as pessoas que já estão incluídas ajudam a resolver esses desequilíbrios. Isso pode acontecer por meio de modelos femininos, mas também homens no poder que ajudam as mulheres e outras minorias a avançar e ser incluídas”, diz Simone, da Universidade de Londres.

Diversas empresas têm apoiado a diversidade na tecnologia porque perceberam que são parte importante da solução e que o cenário não vai mudar se elas não fizerem a sua parte. "Apesar dos índices de representatividade feminina nas empresas ainda não serem ideais, é preciso celebrar as pessoas e organizações que trabalham para possibilitar que meninas e mulheres consigam oportunidades no setor de tecnologia. Na CA, acreditamos que a educação é essencial para um setor plural e igualitário, e por isso apoiamos dezenas de organizações focadas em diversidade ao redor do mundo. Além disso, também promovemos atividades internas e externas para conscientização e mudança de paradigmas que impedem um rápido avanço no âmbito da igualdade de gênero", disse Claudia Vásquez, presidente e diretora-geral da CA na América Latina, em declaração à PrograMaria.

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