Como uma jovem com o talento incomum de aplicar a imaginação poética à ciência imaginou uma “Medeia Simbólica”, que viria a se tornar o computador moderno, iniciando o nascimento da era digital.

Por Maria Popova. Originalmente publicado no BrainPickings.

Augusta Ada King, condessa de Lovelace, batizada Augusta Ada Byron em 10 de dezembro de 1815, mais tarde veio a ser conhecida simplesmente como Ada Lovelace. Hoje, ela é celebrada como a primeira programadora do mundo – a primeira pessoa a casar as capacidades matemáticas de máquinas computacionais com as possibilidades poéticas da lógica simbólica aplicada com imaginação. Essa combinação peculiar foi o produto da forma igualmente peculiar em que foi criada.

Onze meses antes de seu nascimento, seu pai, o grande poeta romântico e playboy escandaloso Lord Byron, se casou relutantemente com Annabella Milbanke, uma jovem reservada e matematicamente dotada de uma família rica.

Relutantemente, porque Byron via em Annabella não uma perspectiva romântica, mas uma proteção contra suas paixões perigosas, como sua longa lista de casos indiscriminados com homens e mulheres.

Lord Byron em vestido albanês (Retrato de Thomas Phillips, 1835)/ Wikimedia Commons

Lord Byron em vestido albanês (Retrato de Thomas Phillips, 1835)/ Wikimedia Commons

O poeta veio então a ver sua esposa – que antes chamava carinhosamente de “Princesa dos Paralelogramas” em reverência por seus talentos matemáticos – como uma antagonista calculista, uma “Medeia Matemática”. Mais tarde, Lord Byron veio a zombar dela em seu famoso poema épico Don Juan:

“Sua ciência favorita era a matemática … Ela era um cálculo ambulante.”

Augusta Ada Byron quando criança.

Augusta Ada Byron quando criança.

Ada nunca se encontrou com seu pai, que morreu na Grécia aos trinta e seis anos. Ada tinha oito anos. Em seu leito de morte, ele implorou a seu criado: “Oh, minha pobre criança! – minha querida Ada! Meu Deus, eu poderia ter visto ela! Dê a ela a minha bênção”. A menina foi criada por sua mãe, que estava empenhada em erradicar qualquer vestígio da influência de seu pai, imergindo-a na ciência e matemática a partir dos quatro anos. Aos doze anos, Ada ficou fascinada pela engenharia mecânica e escreveu um livro chamado Flyology, no qual ilustrou com seus próprios projetos seu plano para a construção de um aparelho de voo. No entanto, ela sentia que parte dela – a parte poética – estava sendo reprimida. Em um ataque de desafio adolescente, ela escreveu para sua mãe:

Você não vai me conceder poesia filosófica. Inverta a ordem! Você vai me dar filosofia poética, ciência poética?

Com certeza, o mesmo atrito que causou o divórcio de seus pais, foi responsável pela fusão que tornou Ada a pioneira da “ciência poética”, Essa fricção frutífera é o que Walter Isaacson explora enquanto cria o perfil de Ada no capítulo inicial do livro “The Innovators: How a Group of Hackers, Geniuses, and Geeks Created the Digital Revolution”  (algo como: Os inovadores: Como um grupo de hackers, gênios e geeks criaram a Revolução Digital”), ao lado de pioneiros como Vannevar Bush, Alan Turing, e Stewart Brand. Isaacson escreve:

Ada herdou o espírito romântico do pai, um traço que sua mãe tentou minimizar ao ensiná-la matemática. A combinação produziu em Ada um amor pelo que ela chamou de “ciência poética”, que ligava sua imaginação rebelde a seu encantamento por números. Para muitos, inclusive seu pai, as sensibilidades rarefeitas da era romântica entraram em conflito com a euforia por tecnologia da Revolução Industrial. Ada porém, se sentia confortável na interseção de ambas as eras.

 

Ada King, Condessa de Lovelace (Retrato de Alfred Edward Chalon, 1840)

Ada King, Condessa de Lovelace (Retrato de Alfred Edward Chalon, 1840)

Quando tinha apenas dezessete anos, Ada assistiu a um dos lendários salões de Charles Babbage. Lá, em meio a danças, leituras e jogos intelectuais, Babbage realizou uma demonstração dramática de sua Máquina Diferencial, uma uma máquina calculadora que estava construindo. Ada foi instantaneamente cativada por suas possibilidades poéticas, muito além do que o próprio inventor da máquina tinha imaginado. Mais tarde, uma de suas amigas comentaria: “A srta. Byron, jovem como era, entendeu seu funcionamento e viu a grande beleza da invenção”.

Isaacson esboça o significado desse momento, tanto na vida de Ada como na trajetória de nossa cultura:

O amor de Ada tanto pela poesia quanto pela matemática a preparou para ver a beleza em uma máquina de computação. Ela foi um exemplar da era da ciência romântica, que foi caracterizada por um entusiasmo lírico pela invenção e descoberta.

[…]

Foi um tempo não muito diferente do nosso. Os avanços da Revolução Industrial, incluindo a máquina a vapor, o tear mecânico e o telégrafo, transformaram o século 19 da mesma forma que os avanços da Revolução Digital – o computador, o microchip e a Internet – transformaram o nosso. No coração de ambas as eras foram os inovadores que combinaram imaginação e paixão com a maravilhosa tecnologia, uma mistura que produziu a ciência poética de Ada e que o poeta Richard Brautigan do século 20 chamaria de “máquinas de graça amorosa.”

Encantada pela perspectiva da “ciência poética” que imaginou possível, Ada quis convencer Charles Babbage a ser seu mentor. Em uma carta para ele, ela escreveu:

Tenho uma maneira peculiar de aprender, e acho que somente um homem peculiar pode me ensinar com sucesso… Não me considere presunçosa, …mas acredito que tenho o poder de ir tão longe quanto eu quiser em tais atividades, e onde existe uma determinação tão forte, eu quase deveria dizer uma paixão, como eu tenho por elas, eu me pergunto se não há sempre uma porção de genialidade natural também.

Aqui, Isaacson faz uma observação peculiar: “Seja devido aos seus opiáceos ou à sua criação ou a ambos”, escreve ele ao citar essa carta, “ela desenvolveu uma opinião um pouco desproporcional de seus próprios talentos e começou a descrever a si mesma como um gênio”. A ironia, claro, é que ela era um gênio – o próprio Isaacson reconhece pelo próprio ato de optar por abrir sua biografia de inovação com ela. Mas será que um homem com tal habilidade e tão firme confiança nessa capacidade seria descrito como tendo um “opinião desproporcional”, por ser alguém com uma “visão exaltada de seus talentos”, como Isaacson escreve mais tarde sobre Ada? Se uma mulher de brilho incontestável não pode orgulhar-se de seu próprio talento sem ser apelidada de delirante, então, certamente, há pouca esperança para o resto de nós meros mortais femininos de fazer qualquer afirmação de confiança sem ser acusado de arrogância.

Com certeza, se Isaacson não visse o imenso valor da contribuição cultural de Ada, ele não a teria incluído no livro – um livro que, nada menos, se abre e fecha com ela. Estas observações, portanto, são talvez menos uma questão de uma opinião pessoal lamentável do que um reflexo de convenções culturais limitadas e nossa ambivalência sobre o nível admissível de confiança que uma mulher pode ter em seus próprios talentos.

Isaacson, na verdade – apesar de contestar se Ada merece consagração como “a primeira programadora de computador do mundo” comumente atribuído a ela – mostra com clareza a relevância de sua contribuição:

A capacidade de Ada de apreciar a beleza da matemática é um dom que escapa a muitas pessoas, incluindo algumas que se consideram intelectuais. Ela percebeu que a matemática era uma linguagem adorável, uma que descreve as harmonias do universo e pode ser poética às vezes. Apesar dos esforços de sua mãe, ela permaneceu filha de seu pai, com uma sensibilidade poética que lhe permitia ver uma equação como uma pincelada que pintava um aspecto do esplendor físico da natureza, assim como ela podia visualizar o “mar vinho-escuro” ou uma mulher que “Anda em beleza, como a noite.” Mas o apelo das matemáticas foi ainda mais profundo; Era espiritual. Matemática “constitui a linguagem através da qual só podemos expressar adequadamente os grandes fatos do mundo natural”, disse ela, e nos permite retratar as “mudanças de relacionamento mútuo” que se desenrolam na criação. É “o instrumento através do qual a mente fraca do homem pode mais eficazmente ler as obras de seu Criador”.

Essa capacidade de aplicar a imaginação à ciência caracterizou a Revolução Industrial, bem como a revolução da computação, para a qual Ada se tornaria uma santa padroeira. Ela conseguiu, como disse a Babbage, compreender a conexão entre poesia e análise de maneiras que transcendiam os talentos de seu pai. “Eu não acredito que meu pai era (ou poderia ter sido) um Poeta tal como eu vou ser uma Analista; Pois, para mim os dois vão junto de forma insolúvel”, escreveu.

Mas a contribuição mais importante de Ada veio de seu papel tanto como uma voz para as ideias de Babbage, numa época em que a sociedade as considerava ridículas, quanto como um amplificador de seu potencial além do que o próprio Babbage imaginara. Isaacson escreve:

Ada Lovelace apreciou plenamente o conceito de uma máquina de uso geral. Mais importante ainda, ela imaginou um atributo que poderia torná-la realmente surpreendente: poderia potencialmente processar não apenas números, mas qualquer notação simbólica, incluindo musical e artística. Ela viu a poesia em tal ideia, e começou a encorajar os outros a ver também.

Modelo experimental do Mecanismo Analítico de Babbage, concluído após a sua morte (Museu da Ciência)

Modelo experimental do Mecanismo Analítico de Babbage, concluído após a sua morte (Museu da Ciência)

Em seu complemento para o Mecanismo Analítico de Babbage escrito em 1843, simplesmente intitulado Notas, ela delineou quatro conceitos essenciais que moldariam o nascimento da computação moderna um século mais tarde. Primeiro, ela imaginou uma máquina de propósito geral capaz não só de executar tarefas pré-programadas, mas também de ser reprogramada para executar uma gama praticamente ilimitada de operações – em outras palavras, como Isaacson aponta, ela imaginou o computador moderno.

Seu segundo conceito se tornaria uma das bases da era digital – a ideia de que tal máquina poderia lidar com muito mais do que cálculos matemáticos; Que poderia ser uma “Medeia Simbólica” capaz de processar notações musicais e artísticas. Isaacson escreve:

Essa percepção se tornaria o conceito central da era digital: qualquer parte de conteúdo, dados ou informações – música, texto, imagens, números, símbolos, sons, vídeo – poderia ser expressa em forma digital e manipulada por máquinas. Mesmo Babbage não conseguiu enxergar isso plenamente; Ele se concentrou em números. Mas Ada percebeu que os dígitos nas engrenagens poderiam representar outras coisas além de quantidades matemáticas. Assim ela fez o salto conceitual de máquinas que eram meros calculadores para aqueles que agora chamamos de computadores.

Sua terceira inovação era um esboço de passo a passo de “o funcionamento do que chamamos agora um programa de computador ou algoritmo”. Mas foi sua quarto inovação, observa Isaacson, que foi e continua a ser o mais importante – a questão de saber se as máquinas podem pensar de forma independente, e que ainda lutamos para responder na era das fantasias inspiradas na Siri, como vemos no filme Her. Ada escreveu em suas Notas:

O Mecanismo Analítico não tem pretensões para originar qualquer coisa. Pode fazer qualquer coisa que nós saibamos como ordená-lo a executar. Pode seguir análise; mas não tem poder de antecipar quaisquer relações analíticas ou verdades.

No capítulo final, intitulado “Ada Forever”, Isaacson considera as implicações duradouras desta pergunta:

Ada também poderia se justificar em se gabar de que estava correta, pelo menos até agora, em sua controvérsia: que nenhum computador, por mais poderoso que fosse, seria realmente uma máquina “pensante”. Um século depois de sua morte, Alan Turing apelidou isto de “a objeção de Lady Lovelace” e tentou descartá-la fornecendo uma definição operacional de uma máquina pensante – em que uma pessoa que faz perguntas não fosse capaz de distinguir a máquina de um humano – e previu que um computador poderia passar neste teste dentro de algumas décadas. [Saiba mais sobre o Teste de Turing] Até agora, entretanto, são mais de sessenta anos, e as máquinas que tentam enganar as pessoas no teste conseguem, na melhor das hipóteses, tentativas toscas de conversas do que um pensamento real. Certamente, nenhuma das máquinas conseguiu quebrar a regra de Ada, de “originar” pensamentos próprios. [Isso está mudando rapidamente! Mas mesmo o cienstita Michael Dyer, que está criando programas de computador capazes de inventar histórias, aprender dos próprios erros e ter emoções como o ser humano, não tem certeza se já é possível dizer que esses computadores pensam. Leia entrevista com o cientista Michael Dyer, ]

Ao encapsular o legado supremo de Ada, Isaacson mais uma vez toca em nossa ambivalência sobre as mitologias do gênio – talvez ainda mais do gênio das mulheres – e encontra a sabedoria em suas próprias palavras:

Como ela mesma escreveu nessas “Notas”, referindo-se ao Mecanismo Analítico, mas em palavras que também descrevem sua reputação flutuante: “Ao considerar qualquer novo assunto, frequentemente há uma tendência de supervalorizar o que achamos que já é interessante ou notável; e, em segundo lugar, por uma espécie de reação natural, subestimar o verdadeiro estado do caso “.

A realidade é que a contribuição de Ada foi profunda e inspiradora. Mais do que Babbage ou qualquer outra pessoa de sua época, ela foi capaz de vislumbrar um futuro em que as máquinas se tornariam parceiros da imaginação humana, juntos tecendo tapeçarias tão bonitas como as do tear Jacquard. Sua apreciação pela ciência poética levou-a a celebrar uma máquina de cálculo que foi dispensada pelo meio científico de seu tempo e ela percebeu como o poder de processamento de um dispositivo desse tipo poderia ser usado em qualquer forma de informação. Assim Ada, condessa de Lovelace, ajudou a semear as sementes para uma era digital que floresceria cem anos mais tarde.

Ada morreu de um câncer de útero progressivamente debilitante em 1852, quando ela tinha trinta e seis – a mesma idade que Lord Byron. Ela pediu que ela fosse enterrada em um túmulo rural, ao lado do pai que nunca conheceu, mas cuja sensibilidade poética moldou profundamente seu próprio gênio de “ciência poética”.

O livro continua a traçar a influência de Ada, que reverbera através do trabalho seminal de um estável de pioneiros tecnológicos ao longo deste século e meio desde a sua morte. Complemente-a com a espirituosa carta de Ada sobre ciência e religião.


Traduzido por Krystal Campioni. Krystal trabalha com desenvolvimento e design há 8 anos. Em seu tempo livre, ela risca itens da sua lista de “Coisas para fazer antes de morrer”.

Imagem de destaque desse post é do post Ada Lovelace: The First Computer Programmer, da iQ Intel.