Negócios fundados por mulheres tendem a receber menos investimento, mas diversas iniciativas estão tentando virar o jogo na desigualdade de gênero

 

A essa altura da #SprintPrograMaria Mulheres em Startups, você já foi apresentada aos aspectos mais legais das startups. Já teve a oportunidade de entender o potencial desse modelo e sua capacidade de resolver diversos problemas através da inovação, conheceu mulheres incríveis que fazem parte desse ecossistema e até algumas ferramentas e metodologias. Agora me cabe a tarefa de te contar um lado não muito legal desse universo para que você saiba melhor com o que vai lidar. E é preciso saber que, infelizmente, a desigualdade de gênero é uma realidade também por aqui. 

Startups dependem de tecnologia para funcionar. E se você está aqui na PrograMaria, já sabe que infelizmente o mundo da tecnologia ainda é tradicionalmente masculino. O das startups também: embora o setor esteja em crescimento constante, mais de 90% das startups brasileiras foram fundadas somente por homens. Apenas 4,7% foram fundadas exclusivamente por mulheres e 5,1% por mulheres e homens, segundo o estudo Female Founders Report 2021.  Esse número é praticamente igual ao de dez anos atrás, quando o universo das startups ainda engatinhava: 4,4% de fundadoras mulheres e 3,5% de fundadores homens e mulheres. A situação melhora um pouco quando olhamos para o quadro societário, mas ainda está longe de ser ideal: 29,5% das startups brasileiras possuem mulheres entre as partes societárias. 

Não apenas são poucas mulheres, mas também de um perfil muito homogêneo: 76,5% são brancas e 87,5% se declaram heterossexuais. Um pouco mais da metade tem filhos. E por falar em perfil homogêneo, a Associação Brasileira de Startups (Abstartups) também aponta que cerca de 60% das startups do Brasil estão na região Sudeste. E, deste grupo, apenas 21% possuem fundadores negros, sendo que em 45% dos negócios sudestinos não contam com nenhuma pessoa negra na equipe.

Essa desigualdade já é inaceitável, especialmente ao considerarmos que as áreas de tecnologia e inovação serão cada vez mais importantes no mercado de trabalho e que a tendência é que o ecossistema de startups continue crescendo. Mas piora, porque além das mulheres e pessoas negras serem minoria entre os fundadores e sócios, também tendem a receber menos investimento, inclusive porque há poucas mulheres e negros nos fundos que realizam esses aportes. Tudo isso impacta na sobrevivência das startups.

 

“No ecossistema de startups, além de não ter um ambiente inclusivo onde a mulher esteja à vontade para se fazer ouvida, tem também a questão da falta de dinheiro, que compromete ideias incríveis. Há pouco recurso disponível para esse lugar de investir nas mulheres, e muitos lugares ainda veem como caridade, e não como oportunidade de negócio. Essa chave ainda não foi virada. Não adianta só treinar a mulher, tem que pôr dinheiro na mão dela também, especialmente se trabalhamos com essas lentes [de gênero, raça, classe etc].” 

Ítala Herta, fundadora da Diver.SSA

 

Os dados dão a dimensão dessa desigualdade: 

  • As startups lideradas só por mulheres receberam apenas 0,04% dos mais de US$ 3,5 bilhões aportados no mercado em 2020 (Female Founders Report 2021). 
  • Hoje, 74% dos fundos não têm mulheres entre as partes fundadoras e nem nos conselhos. Apenas 3% têm exclusivamente mulheres entre as fundadoras. (Female Founders Report 2021). 
  • Essa mesma pesquisa verificou que 68,2% das mulheres líderes de startups nunca tentaram fazer captação de recursos e 36,2% das que tentaram não conseguiram, porcentagem que é maior entre as mulheres com filhos. 
  • Captar crédito ou capital com investidores/as figura entre os maiores desafios para as empreendedoras, bem como a validação do modelo de negócio e a falta de boas conexões com investidores/as, mentores/as e outras pessoas empreendedoras. Um dos motivos é que 65% das empresas com mulheres à frente são recentes (surgiram nos últimos cinco anos), e muitas ainda estão no início das operações ou validando o produto. 
  • Impressionantes 72,4% das mulheres que passaram por dinâmicas de captação afirmaram ter sofrido assédio moral em função do gênero em suas entrevistas. Elas foram questionadas, por exemplo, se eram ou se pretendiam ser mães, qual era a idade de seus filhos, se possuíam homens no quadro societário e se seriam capazes de tocar o negócio por conta própria. 
  • Mesmo quando as mulheres conseguem captar, o cenário segue desigual. O ticket médio para soluções com fundadoras mulheres é menor em todas as fases da captação: em rodadas Anjo, startups de fundadores homens recebem duas vezes mais, e na Series B elas chegam a receber apenas 1/5 do ticket médio do ecossistema.
  • Na verdade, segundo aferido pela empresa estadunidense Oliver Wyman, mulheres CEOs são ligeiramente menos propensas a garantir uma rodada subsequente de financiamento após o primeiro investimento. E a falta de capital na fase de expansão e profissionalização da empresa compromete seu crescimento no médio e longo prazo.

 

“No Brasil temos a cultura de emprestar dinheiro para quem já tem. Então é preciso aprender a confiar nas mulheres, repensar essa cultura e criar produtos e modelos mais inclusivos de investimento. Muitas vezes, os investidores já querem empreendedoras prontas.

Ítala Herta, fundadora da Diver.SSA

 

Mas por que isso acontece? 

É preciso ir além da já sabida menor presença das mulheres no mercado da tecnologia para entender por que essa desigualdade existe e se perpetua. Aqui entram em cena os vieses inconscientes e os estereótipos de gênero (sempre eles!). 

Em relação aos estereótipos de gênero, é importante lembrar que algumas atividades, como o networking, demandam um tempo que nem todas as mulheres têm. Para aquelas que são mães, que precisam lidar com afazeres domésticos (olá, pandemia) ou que precisam dividir o tempo com um cargo assalariado, por exemplo, fica muito mais complicado. Além disso, como estamos cansadas de saber, historicamente os homens são muito mais incentivados a ter uma postura “empreendedora” e a lidar com o risco. 

Já os vieses inconscientes são filtros com os quais vemos e entendemos o mundo, muitas vezes sem nem perceber. São baseados nas nossas experiências e nos que é apresentado (ou não) ao longo da vida. É o que faz com que, aqui no Brasil, a maioria das pessoas ainda pense em um homem branco, jovem e heterossexual ao imaginar “alguém de T.I”. Ou que, ao ver uma pessoa com um cargo alto, imaginemos que seu sotaque seja de algum lugar do Sul ou Sudeste. E tudo isso acaba interferindo na trajetória das startups fundadas por pessoas de grupos minorizados. 

 

“Vários fatores colaboram para a desigualdade. Como há poucas mulheres empreendendo, há poucas referências de liderança feminina. Mas as que têm essa ousadia também têm dificuldade de obter capital, há uma tendência a fazer menos networking, ter menos acesso a investidores. Em suma, são barreiras de acesso impulsionadas pelos vieses inconscientes e pela falta de lideranças.

Naiane Pontes, Associate na We Ventures  

 

As pesquisas existentes deixam bastante evidente como todos nós (inclusive os/as investidoras de venture capital) temos esses vieses, que acabam por privilegiar sempre os mesmos grupos. Por exemplo, as perguntas feitas para fundadores homens e mulheres diferem: em geral, elas são mais questionadas sobre aspectos negativos (potencial de perdas) enquanto eles são perguntados a respeito de positivos (potencial de crescimento). Há, ainda, o viés de similaridade: se as partes investidoras são em maioria homens, tendem a investir em homens. Da mesma maneira, empresas com fundadora(s) mulher(es) tendem a contratar mais mulheres (estudo da Kauffman Fellows) e, no Brasil, startups brasileiras que possuem fundadores negros têm também maior proporção de mulheres, pessoas negras, pessoas com mais de 50 anos, pessoas com deficiência e transexuais contratadas (segundo a Abstartups). 

 

“Está mais do que provado que o nosso olhar filtra, e ele pode ser um filtro para o bem e para o mal. E quanto mais diversidade entre os tomadores de decisão, maior o valor gerado para a economia como um todo, porque a diversidade é uma alavanca de valor.  E tecnologia, inovação e diversidade andam juntos. Nesse sentido, precisamos investir muito em colocar mais mulheres na liderança, até porque a desigualdade de gênero se acentua conforme a carreira avança.”

Vanessa Viana, sócia da Capital Lab Ventures e mais de 20 anos de experiência no mercado financeiro

 

O estudo “Panorama do ecossistema de startups no Brasil — rumo à diversidade racial” entrevistou pessoas responsáveis por grande parte dos investimentos, acelerações e fomento de startups no Brasil (vale a leitura completa!) e detalha muito bem os gargalos na seleção. Alguns se destacam: 

  • Critérios relacionados aos fundadores têm um grande peso na avaliação do negócio. Em geral, esses critérios incluem o background das pessoas fundadoras, suas habilidades e o alinhamento da equipe fundadora com o agente e o negócio. E tendem a selecionar um perfil bastante específico. Por exemplo: só pode fazer MBA em Harvard ou Stanford quem fala inglês, mas apenas 5% da população brasileira acima de 16 anos possui algum conhecimento nessa língua. Ainda, algumas pessoas entrevistadas disseram que um/a fundador/a com um determinado tipo de linguajar/vocabulário pode eventualmente ser percebido/a como mais articulado/a e persuasivo/a do que um/a outro/a cujo estilo de apresentação destoa do padrão do ecossistema — ainda que ambos/as estejam igualmente preparados.
  • A capacidade de crescimento da startup também é avaliada. No entanto, isso não depende só de seu potencial, mas também do apoio que recebe. Fundadores/as com menor acesso a capital financeiro e a capital relacional possivelmente terão mais dificuldade para chegar, de antemão, à maturidade exigida pelas partes investidoras. 
  • Todos os agentes de investimento entrevistados disseram que a indicação tem relevância na seleção inicial de uma startup, e 80% a consideram muito importante ou essencial. Ou seja, é comum que os indicados(as) façam parte da rede pessoal de contatos de quem está indicando, tendo frequentado a mesma universidade, empresa etc. Isso acaba reforçando o atual perfil do empreendedor do ecossistema — homem, branco, formado em universidades de ponta —, limitando o acesso de fundadores/as com perfil mais diverso e sem uma rede de contatos forte. 
  • A possibilidade de dedicação integral ao negócio também é um critério eliminatório. E, também, filtra um perfil específico, por exemplo: na rede da Google for Startups de São Paulo há dez vezes mais fundadores não negros do que negros em dedicação integral. 
  • Os investidores observam ainda se os/as fundadores/as têm participação significativa no aporte de capital no negócio. Se não têm, a startup tem maior risco de ser rejeitada. Só que fundadores/as com menor capacidade de investir recursos próprios ou de receber aportes de amigos/as e parentes são exatamente aqueles/as que mais precisam buscar recursos de fontes mais dispersas.

É bastante nítido como o ciclo se retroalimenta, né? Não é coincidência que seja esse o perfil dos fundadores dos nove unicórnios (startups com valor de mercado superior a 1 bilhão de dólares) brasileiros identificados por um estudo da Distrito de 2020: 93% homens, 43% estudaram na USP e 40% fizeram pós-graduação em Harvard ou Stanford. 

Tem saída?

Acredite, esse texto não é para te desestimular a explorar o universo das startups. Pelo contrário, é para te ajudar a tomar uma decisão informada e a ponderar os riscos e se adiantar nas soluções. A desigualdade é estrutural e não se resolve de um dia para o outro. Mas isso não significa que não há caminhos possíveis. Uma coisa é fato: esse caminho é bem menos tortuoso quando não é feito sozinho/a.

“Quando uma mulher está na liderança, ela puxa outras, cria um efeito multiplicador. Por exemplo, há anos faço parte de uma rede de mulheres executivas dos mercados de private equity e venture capital, onde debatemos como criar oportunidades reais para mulheres nesse mercado. Em 20 anos de carreira já passei por muita coisa, a ponto de sequer ter banheiro feminino no local da reunião. Hoje vejo que o cenário já é outro, até porque existe uma pressão social. Estamos muito longe do ideal, mas já começou a mudar.”

Vanessa Viana, sócia da Capital Lab Ventures e mais de 20 anos de experiência no mercado financeiro

 

E existem muitas pessoas, organizações e fundos dispostos a investir em negócios de mulheres, como: 

  • Diver.SSA – Iniciativa focada em fomentar o empreendedorismo feminino de impacto social no Norte/Nordeste. Baseia-se nos pilares de acolhimento estratégico para lideranças femininas em contextos de vulnerabilidades sociais e urgências econômicas; uso e acesso a tecnologias e inovação social para resolução de problemas reais enfrentados por mulheres em territórios vulneráveis; educação empreendedora e desenvolvimento pessoal para mulheres; fomento e sensibilização dos ecossistemas de empreendedorismo para garantia da equidade de gênero, feminilidades, geração de renda e empregabilidade; acesso e conexão com especialistas, oportunidades e investidores.
  • Negras Plurais – Rede de aceleração de negócios entre mulheres negras. Atua para dar visibilidade, impulsionar e incluir projetos no mercado econômico, a fim de minimizar as desigualdades de gênero e raça.
  • We Ventures – Primeiro fundo da América Latina 100% dedicado a investimento em mulheres em tech, investindo em startups de tecnologia com ao menos uma fundadora mulher. Aborda a inclusão das mulheres na tecnologia e no empreendedorismo, facilitando o acesso delas ao capital. Em um universo muito baseado em confiança e networking e tradicionalmente composto por homens, há uma rede muito fechada de investidores e fundadores que compartilham recursos entre si. A We Ventures visa quebrar este ciclo e evitar que isso se repita em gerações futuras.
  • Rede Mulher Empreendedora Rede de apoio ao empreendedorismo feminino do Brasil. Promovem eventos, produzem pesquisas e trabalham visando à integração, capacitação e troca de conhecimento entre mulheres que possuem ou buscam o próprio negócio, espalhadas por todo o País. 

 

Vale ressaltar: reverter uma desigualdade dessa dimensão e com tantas nuances requer iniciativas específicas e direcionadas, mas também precisa da proatividade dos agentes tradicionais desse universo. A boa notícia é que muitos já perceberam e estão se mexendo – e o número de mulheres já está aumentando. Está mais do que na hora da gente virar esse jogo 🙂

 

 CRÉDITO:

Nana Soares, Jornalista freelancer, pesquisadora

Comunicadora especializada em gênero e sexualidade e mestre em Gênero e Desenvolvimento pela University of Sussex (Inglaterra). Trabalha como freelancer em projetos e organizações de impacto social, ama tubarões e Sandy e Junior. Redes sociais: https://www.linkedin.com/in/nana-soares-903b4475/

 

REVISÃO:

Luciana Fleury, jornalista

Formada em Jornalismo pela Cásper Líbero. Tem trabalhado com o desenvolvimento de projetos editoriais, produção de conteúdos e edições de textos. É mãe orgulhosa da Gabriela e coleciona globos de neve. Redes sociais: https://www.linkedin.com/in/luciana-fleury-1b024083/

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