Conheça o perfil da entrevistada no PrograMaria Fala em parceria com a Intel e acompanhe o evento ao vivo

 

Daniela Andrade é uma desbravadora. Mulher, trans, filha de pai pedreiro e mãe dona de casa, ela nasceu no distrito de São Miguel Paulista, na Zona Leste de São Paulo, e trabalha como programadora há 23 anos – desde 1998, quando fez seu primeiro estágio durante o curso técnico em Processamento de Dados. 

Ela começou cedo, e hoje, com 41 anos e vivendo em Québec, cidade no Canadá, Dani sabe que sua trajetória é fora da curva e rejeita que sua história seja exemplo de que a meritocracia funciona. “Sou a exceção que só prova que a regra precisa mudar”, falou em entrevista à PrograMaria. Ela carrega muitas histórias sobre como foi trilhar seu caminho na área, marcado pelas dificuldades que as mulheres enfrentam na tecnologia e pelos obstáculos que marginalizam as pessoas trans. “Num país transfóbico como o nosso, não há oportunidades quando sua identidade de gênero chega antes da sua capacidade e da sua competência”, resume.

Ao ouvir Dani contar mais de sua vida, dá pra pensar sua trajetória como uma ponte entre passado e futuro, o velho e o novo. Ela é, sem dúvidas, pioneira, por desbravar caminhos em uma região desconhecida ou por anunciar algo de novo, antecipando-se aos demais de sua área de conhecimento.

Como dizem na internet, Dani andou para que muitas pudessem correr. Durante sua vida profissional, conta nos dedos o número de mulheres com quem trabalhou nos mais de 20 anos de carreira. Ela também se diverte relembrando como era a realidade de buscar conhecimento para quem não tinha condições financeiras de arcar com cursos e certificações que custavam milhares de reais. “Aprendi HTML com livro – e livro de papel, hein? Indo na biblioteca!”, ri. Ao longo dos anos, evoluíram também as tecnologias e práticas no mercado: ela vivenciou, por exemplo, o início de desenvolvimento para web nos anos 2000 e também o início de desenvolvimento microsserviços nos últimos anos.

Na época da sua transição de gênero, ela relata que “mudar o nome nos documentos era extraordinariamente difícil, tive que entrar com ação judicial”, uma vitória que só veio em 2018, com a decisão do STF de que para alterar nome e gênero não seria mais necessários autorização judicial, laudo médico ou comprovação de cirurgia de redesignação sexual. (Vale conferir o site PoupaTrans https://www.poupatrans.org.br/, que oferece  um passo a passo sobre como retificar nome e gênero na documentação). 

A programadora  também é pioneira por seu ativismo pelos direitos humanos e das pessoas trans – ela foi responsável por desenvolver a primeira versão da plataforma da TransEmpregos, maior e mais antigo projeto voltado para a empregabilidade de profissionais trans e travestis – parceira, aliás, da iniciativa #MaisDiversidadeNaTecnologia, realização da PrograMaria com a Intel, responsável por uma série de ações ao longo de 2021 para incentivar pessoas trans e travestis na tecnologia.

Foi na tecnologia que ela encontrou refúgio: “a linguagem de programação não discrimina, trata todos igualmente. Você vai aprender e nada vai te impedir disso!”. Apesar de colecionar histórias de discriminação, Dani não quer comover as pessoas. Nos eventos em que palestra, reforça para uma plateia frequentemente em prantos: “Calma, gente, eu superei, estou aqui, viva e belíssima!”.  A paulista está mais interessada em promover conscientização para mudanças. Citando Lohana Berkins, ativista trans argentina, ela provoca: “o que as pessoas não-trans e travestis podem fazer para que a gente também faça parte desses espaços que também são nossos?”.

Confira trechos da entrevista e inscreva-se para acompanhar ao vivo o #PrograMariaFala com Daniela de Andrade, no dia 15/07/2021, às 19h, em parceria com a Intel, dentro da iniciativa #MaisDiversidadeNaTecnologia. Você ainda pode enviar sua pergunta para ser respondida por ela e concorrer a uma mentoria diretamente com essa mulher incrível! 🙂

 

Início na tecnologia

O interesse na tecnologia, na vida de Dani, veio de forma muito prática. Diferente da maioria dos homens com quem trabalhou – todos cis, hétero, classe média alta-, que diziam ter se interessado por tecnologia desde cedo, por causa da interação com o videogame e o computador, ela declara: “Essa não é a minha história. Meu pai era pedreiro e minha mãe, dona de casa, semianalfabeta. Era uma questão de sobrevivência, eu precisava trabalhar, e o ensino médio técnico era a forma mais rápida de conseguir um emprego.”

Era 1995, Dani estava na 8ª série, e, sentada em um ônibus, viu um anúncio de matrículas abertas para o técnico em Processamento de Dados, na ETEC Professor Camargo Aranha. “Naquela época se falava muito pouco sobre TI, vinha a imagem do homem nerd, branco, em frente ao computador com uma tela preta, e também os exemplos de Steve Jobs e Bill Gates. Se falava que era uma área que dava muito dinheiro. Achei que ficaria riquíssima!”, ela gargalha.

Dani estudou a vida inteira em escola pública e, após concluir o ensino médio técnico, pensou: “agora preciso fazer uma faculdade de TI! Na minha época, ter um diploma significava que você era a top do universo!”. Ingressou no curso de Sistemas de Informação da Universidade São Marcos pelo Prouni, Programa Universidade para Todos criado em 2004 durante o governo Lula, e, na mesma época, ela conseguiu seu primeiro emprego, numa empresa de logística em Alphaville. “Morava em São Miguel Paulista, na Zona Leste, ia trabalhar em Alphaville, num trajeto que me tomava duas horas, duas horas e meia – se não chovesse, e à noite, estudava no Tatuapé. Foi um período bastante difícil”, relata.

Dos 40 alunos, havia apenas outras 4 mulheres. “Hoje em dia começou a mudar um pouco, mas aguentar machismo, misoginia, todos preconceitos possíveis… No final, a gente merecia não um diploma, mas um troféu!”

 

Principal desafio: discriminação

Dani também faz a ponte entre passado e presente na sua atuação profissional como analista programadora: por ter trabalhado com tecnologias consideradas ultrapassadas, hoje ela lida bastante com os chamados sistemas legados, o que permitiu um conhecimento vasto em diferentes tecnologias, como o desempenho de diferentes funções em um mesmo projeto e uma capacidade grande de adaptabilidade, características que a tornam uma profissional extremamente desejada. Um aspecto positivo de um caminho bastante desafiador: “Eu não pude escolher onde trabalhar, os empregos me escolheram, afinal, quem, ainda mais anos atrás, vai dar emprego para mulher trans?”, aponta. Mesmo com qualificação e numa área sempre aquecida, ela chegou a ficar quase um ano desempregada por conta da discriminação. Geralmente para vagas de programação, há uma primeira etapa que consiste em um teste técnico, e depois vem a entrevista com RH e a pessoa gestora da área. “Me falavam que eu ia super bem nos testes técnicos e, na hora da entrevista, eu tinha que contar que era trans [por conta dos documentos ainda não retificados]. Perdi a conta de quantas vezes fui reprovada nessa etapa”, denuncia.

Mesmo depois da contratação, os desafios continuavam – como é de praxe para mulheres e outros grupos minorizados na área. “Agiam como se eu não estivesse ali, não falavam comigo, nem “oi” ou “tchau”. Foi muito desmotivador”, desabafa ela que já teve de ouvir vários absurdos no ambiente de trabalho relacionados à sua identidade de gênero.

 

Uma visão honesta sobre a área de TI

Daniela é uma mulher muito pé no chão. Ela disse que gostaria que tivessem mandando a real quando estava no início de carreira para que pudesse se preparar melhor para os desafios que estavam por vir – e foram vários. 

O ambiente também muitas vezes é hostil, colocando pressão sobre mulheres e outras pessoas de grupos minorizados: “Sempre fui a única mulher da equipe, a única pessoa trans na empresa, se eu errar, carrego esse peso. Você não erra só por você, erra pelas que poderão vir”, pontua a injustiça. 

Sua principal crítica é justamente a falta de visão sobre justiça nesses espaços, ainda muito elitistas. “Contratar é só o primeiro passo, é obrigação das empresas em um país que tem mais de 50% de mulheres e pessoas negras”. Para Dani, as empresas precisam também trabalhar a inclusão.

Ela dá um exemplo: há uma exigência para que as pessoas profissionais de TI se atualizem com as novas tecnologias, estudem e façam certificações. “Fui expulsa de casa por ser trans e tive que me sustentar desde o princípio, como pagar certificações caríssimas quando minha preocupação era ter o que comer?”, questiona. Ela defende que é preciso lembrar também sobre o privilégio que é ter tempo para estudar. Às mulheres ainda recaem os cuidados da casa e dos filhos, como exigir que a gente se atualize na mesma velocidade que os homens, que geralmente têm mais tempo livre? 

As empresas devem “dar oportunidades justas – e justiça não é tratar todos iguais, é tratar os desiguais na medida das suas desigualdades”, conclui. É triste pensar que este princípio já está em nossa Constituição há mais de 30 anos, mas continua distante da realidade.

 

O poder da tecnologia

Frente a todos esses desafios que podem desmotivar quem está ou imagina seguir caminho pela tecnologia, Dani é muito transparente. Para ela, a área de tecnologia não é necessariamente para todo mundo, exige diversas características como paciência, gostar de ler, se adaptar à constantes mudanças e desafios, entre outras habilidades.

Por outro lado, ela enxerga na tecnologia, além de uma área dinâmica e com salários atrativos, uma ferramenta muito poderosa. “Eu gosto de programar porque a tecnologia nos dá um poder que a sociedade machista e transfóbica não nos dá, e é por isso que eu acho que todas as mulheres deveriam ocupar a área de TI, é um poder que a gente extraordinário, você pode construir software para resolver problemas inimagináveis!”.

Ela mesma participou da criação do TransEmpregos, projeto cofundado pela atriz Maite Schneider, a cartunista Laerte Coutinho e a advogada Márcia Rocha, voltado para a empregabilidade de profissionais trans e travestis.  Em todos esses 23 anos de carreira, Dani já trabalhou com projetos de diversos portes e segmentos nas mais variadas empresas e em todas as fases da engenharia de software.

Ela destaca que a área de TI abre portas inimagináveis e não só no Brasil: “nem nos meus sonhos mais cor-de-rosa, eu imaginaria estar morando no Canadá, por conta dos meus próprios esforços”, comemora ela, que tem como plano comprar em breve sua casa própria com o marido e seus dois gatos, Seu Arlindo e Divina.

 

O novo sempre vem

Ao resgatar sua trajetória, Dani responde qual foi a principal lição que aprendeu:  “duvidaram muito de mim, recebi muitos “nãos” na minha carreira. Ouvi muitas vezes que a área não era pra mim, que eu deveria ir para beleza e estética. Não podemos ser mais uma pessoa a nos colocar para baixo. A principal lição é acreditar em você mesma”.

E, apesar de todas as estatísticas contra, Dani persistiu e conquistou uma carreira e uma trajetória da qual se orgulha muito – com razão, ela é um exemplo de inspiração para todes. Com base no exemplo da ativista argentina Lohana Berkins, que fala sobre a importância da mobilização da população trans e travesti para a exigência de direitos e da conscientização das pessoas não-trans e travestis sobre esses direitos, a programadora questiona: “Por que 90% dessa população têm que se prostituir?” Ela faz questão de alertar que não traz esse questionamento como um ataque da prostituição, profissão que, para ela, deveria ser regulamentada e respeitada como qualquer outra. “Temos que lutar para que as oportunidades também existam para as mulheres cis e trans na área de TI.”

 

“O feito que mais me orgulha é que muitas travestis deixaram de ser vítimas passivas para ser vítimas ativas. Na medida em que nós vamos mudando, a sociedade vai mudando. E é porque nos tornamos sujeitas perigosas. Primeiro, sujeitas de consciência, depois sujeitas de direito e sujeitas demandantes.” (Lohana Berkins) https://www.marxists.org/portugues/berkins/2000/10/transgredir.htm

 

Ela, que se mudou para o Canadá no início de 2019, lamenta o contexto político atual do Brasil, mas ao mesmo tempo comemora que muita coisa mudou. “Exatamente por estarmos num momento tão difícil na nossa história, é importante ver nossos avanços”. 

A popularização da pauta das pessoas trans e travestis é recebida ao mesmo tempo com alegria e com responsabilidade. “Infelizmente precisamos continuar falando sobre o que essa população passa para que as pessoas cada vez mais percebam que não é uma questão de vitimismo, coitadismo. É comum ainda ouvir pessoas dizendo “ah, porque a pessoa se prostituiu porque quis, ela tinha escolha”. Eu não entrei por um acaso, porque a sociedade me empurrou pra prostituição. Sou a exceção que só prova que a regra precisa mudar”, defende.

 

Dani é dessas pessoas que trabalham ativamente para a regra mudar, que empurram a história para o novo. Ela se emociona ao perceber que muitas pessoas que estão por vir não vão precisar passar pelo mesmo que ela. “Meu sonho é morar num mundo em que as mulheres trans e travestis possam escolher com o quê trabalhar”, encerra.

E que privilégio é poder ter a certeza de que sua vida contribui para realizar o sonho que você quer ver no mundo. E que privilégio poder viver no mesmo mundo que a Dani. 

 

Confira o #PrograMariaFala com Daniela de Andrade, em parceria com a Intel, dentro da iniciativa #MaisDiversidadeNaTecnologia.