A gente garante: você não está sozinha nessa. E o melhor jeito de se livrar dessa armadilha é a conversa

 

Já perdi a conta de quantas vezes simplesmente deixei uma ideia morrer por achar que não valia a pena criar um projeto em cima dela – ou que já tinha gente muito melhor atuando onde eu queria. Essa é, talvez, a principal forma que a síndrome da impostora assume na minha vida profissional, mas também me é comum: 

  • Achar que sou uma fraude e que vão me descobrir a qualquer momento;
  • Procrastinar alguma tarefa para “provar” que eu não sou tão boa assim;
  • Ter certeza de que não sou a melhor pessoa para assumir um projeto ou falar sobre um assunto;
  • Me comparar com pessoas de trajetórias aparentemente mais bem sucedidas.

Talvez você se reconheça em alguma dessas atitudes. Talvez tenha outros padrões de comportamento que também fazem você achar que não é boa o suficiente para estar onde está ou para chegar onde quer. É a síndrome da impostora se manifestando. Embora esse fenômeno não seja um transtorno psiquiátrico e não conste em manuais diagnósticos, é bastante comum, especialmente em quem se identifica com o gênero feminino. Por isso, o nome foi até flexionado. “É mais comum nas mulheres porque nossa cultura age para nos fragilizar, desde o início da socialização”, resume Lucelena Ferreira, consultora de gênero e liderança e autora do livro “Mulheres na Liderança: obstáculos de gênero nas empresas e estratégias de superação”.

Um bom exemplo: uma pesquisa bastante conhecida da Hewlett Packard Enterprise (HPE) observou que as mulheres só se candidatavam a uma vaga quando preenchiam 100% dos requisitos, enquanto para os homens bastava ter 60% das habilidades descritas para se candidatarem

Além da sensação de se sentir uma fraude ou incompetente, a psicóloga clínica Eilane Santos lembra que não acreditar no próprio mérito e não celebrar suas conquistas também são sintomas comuns. Adquirida com a vivência, a síndrome da impostora tem um componente social fortíssimo. É por isso que pessoas que se identificam com o gênero feminino e outros grupos marginalizados tendem a ser mais afetados, embora todas as pessoas estejam suscetíveis (no Brasil, há pesquisa sobre isso desde, pelo menos, 2014). Nossos referenciais, ainda que inconscientes, muitas vezes são de homens, brancos, heterossexuais etc. Se há poucas mulheres em nossa área e ainda menos em cargos de liderança, a experiência profissional fica mais solitária. Se a figura de mulheres, negras e LGBT no topo é uma exceção, é natural que uma pessoa assim se questione ao ocupar esse espaço. 

“A síndrome da impostora atinge particularmente as minorias sociais porque está ligada à sensação de não pertencer àquele lugar. Quem destoa do estereótipo (mulheres, negros, LGBT+, migrantes etc.) tende a se sentir fora do contexto” – Anna Terra, jornalista e comunicadora.

É o caso da tecnologia. No levantamento realizado pela PrograMaria no início de 2020, com mulheres que já atuam ou querem atuar nessa área, 99.18% disseram sentir falta de mais mulheres palestrando nos eventos de tecnologia. Igualmente revelador é que quase 60% têm interesse em palestrar em eventos do tipo, mas 42.53% delas se sentem nada ou pouco preparadas. E mais de 80% relataram que já se sentiram uma fraude no ambiente de trabalho. Esses dados também podem ajudar a explicar por que quase 4 em cada 10 mulheres da nossa rede se sentem muito ou totalmente estagnadas em suas carreiras. Te parece familiar? 

Autoconhecimento e troca: como calar a impostora

Se a síndrome da impostora pode atrapalhar o desenvolvimento de nossas carreiras, ela também pode ser vencida – ou, ao menos, falar mais baixo. Não quer dizer que é fácil, já que ela se alimenta de uma estrutura social machista, racista, heteronormativa e com pouco espaço para a diferença. Também não é rápido, pois não se reconstrói um jeito de se ver no mundo da noite para o dia. Mas é possível. 

Todas as mulheres que ouvi para esse texto concordaram que o ato de falar a respeito e compartilhar é libertador e nos faz perceber que não estamos sozinhas. A partir daí, reconhecemos padrões de comportamento e criamos nossas próprias ferramentas para lidar com a impostora. Pode ser um grupo de amigas, um grupo de apoio no trabalho, um processo psicoterapêutico. Mas falar é chave na desconstrução. 

Desde que começou o podcast “Chá com a impostora”, em março, a jornalista e comunicadora Anna Terra teve a certeza de que a troca é parte da cura. Nos episódios, ela debate como as impostoras se manifestam em diferentes aspectos de nossas vidas – maternidade, trabalho, academia etc. “Precisamos falar mais sobre nossas vulnerabilidades, nada conecta mais do que nos abrirmos de forma mais sincera”, defende. E tem sido esse o maior retorno de quem ouve o podcast: um sentimento de acolhida por não se sentir sozinha, eventualmente seguido de finalmente colocar em prática uma ideia. “Às vezes, só de verbalizarmos já percebemos que o que sentimos não faz muito sentido. E, depois de receber tantas histórias, eu percebo que tenho mais artifícios para lidar com minha própria impostora. Ela continua falando, mas consigo ser mais gentil comigo mesma”, diz Anna. 

Clique para acessar os episódios do podcast no Spotify

Um aviso: Anna quer fazer um episódio sobre mulheres na tecnologia – e relatos são muito bem-vindos!

Os conselhos da psicóloga Eilane Santos vão na mesma linha: autoconhecimento é chave para perceber que cobranças excessivas muitas vezes não dizem respeito a nós e ao nosso potencial, mas ao que é esperado socialmente. “Uma mulher negra, ao começar a entender-se como tal, começa a se posicionar e entender que muito do que vivenciou foi racismo”, exemplifica. 

No processo de autoconhecimento, é possível criar mecanismos para enfrentar a síndrome da impostora e suas aliadas, como a procrastinação, a autossabotagem e por aí vai. Não há como quebrar o ciclo se você não entende como ele funciona para você. E nesse processo, lembremos: não existe receita única para todas as pessoas. 

Nessa palestra, Carol Dweck, pesquisadora pioneira no campo da motivação, fala sobre o código mental construtivo, algo que ajuda no autoconhecimento (disponível em inglês com legendas em português):


Lucelena Ferreira tem outras dicas bem práticas que podem ajudar. Muitas são inspiradas em entrevistas com mulheres CEOs ou líderes de grandes empresas – e sim, elas também são assombradas pela impostora: 

  • Tentar gerenciar a percepção dos outros em aspectos que te interessam: “Se você não fizer isso, vão colar percepções em você de qualquer maneira. Uma de minhas entrevistadas queria muito ser transferida para uma vaga em outro país e deixava isso claro para o chefe porque, se não avisasse, mandariam outra pessoa. Quando apareceu a vaga, ela foi”. 
  • Pedir feedback: “É um presente saber o que pensam de você, até para fazer esse gerenciamento citado anteriormente. Muitas das percepções vêm carregadas de estereótipos e por isso a troca é importante”. 
  • Buscar mentorias, especialmente de mulheres: “Também acho importante ter um(a) mentor(a) dentro da empresa. Alguém que brigue por você, sugira seu nome e coisas do tipo”. 
  • Se jogar, mesmo sem saber tudo (até porque ninguém sabe): “Mesmo sem saber, os homens tentam. E dá certo. É importante exercitar a ousadia, ainda que a ambição feminina nem sempre seja tão bem vista quanto a de um homem”. 

 

Nem tudo depende de você

O último aspecto levantado por Lucelena é central, porque nem sempre o meio nos encoraja a deixarmos a impostora de lado – muitas vezes, é ele que serve como gatilho para acionar essa incômoda convidada. Em uma área predominantemente masculina e branca, essa não é uma história incomum. Na tecnologia, por exemplo, as mulheres tendem a questionar-se com frequência, têm a sensação de que não são boas o suficiente e/ou que não podem errar. Dessa maneira, não se sentem confortáveis em pedir ajuda, o que de fato limita o crescimento profissional, realimentando o ciclo. Quando o ambiente é tóxico, o desgaste mental é inevitável – e o tempo e a energia que poderiam ser utilizados estudando ou trabalhando são totalmente desviados. 

“São assédios do dia a dia sexualização, infantilização, comentários que desmerecem a competência, interrupção da fala, o pedido para pegar o café. Fora o que vem disfarçado de elogio, como dizer ‘você é mais competente do que parece’. São tentativas de reafirmar que a mulher não pertence àquele ambiente”, reforça Lucelena Ferreira. É quando entram em cena os  vieses inconscientes e o duplo padrão (veja também: conteúdo da PrograMaria sobre vieses e algoritmos de Inteligência Artificial). Há pesquisas como esta (disponível em inglês) que mostram que mulheres confiantes são entendidas como menos agradáveis e até como menos ‘contratáveis’. E um estudo recente produzido nos EUA foi ainda mais além: observou que o medo da repercussão negativa influencia mais as mulheres a não se autopromoverem do que a falta de confiança nelas mesmas. 

Nesse sentido, a consultora de gênero e liderança Lucelena mais uma vez recomenda a saída pelo coletivo: “A ajuda mútua entre mulheres é muito poderosa. Uma estratégia possível para evitar o desgaste pessoal é advogar por outras mulheres do mesmo ambiente – e elas por você. Também acho importante reagir, por exemplo, quando te interrompem. E já vi mulheres que levavam dados e reportagens aos chefes homens sobre como mulheres no topo pode beneficiar a empresa”, conta. É bem verdade que as possibilidades de se libertar desse ciclo mudam a depender de sua posição. Uma gestora tem, por exemplo, a influência para alterar processos seletivos, priorizando grupos que não estejam devidamente representados. Mas essas estratégias podem ser um bom ponto de partida para diferentes realidades. 

Para quem convive com a síndrome da impostora – e especialmente se imersa em um ambiente tóxico – há um outro desafio: aprender a lidar com os erros. Costumamos cobrar de nós uma perfeição que sabemos, em teoria, não existir. E na tecnologia, como a psicóloga clínica Eilane Santos lembra, a inovação é um elemento cotidiano. Então, é impossível saber de tudo e erros são parte do processo. O desafio é não deixar com que sejam determinantes ou paralisantes em nossas vidas. Como Eilane resumiu muito bem: “Não é preciso ser perfeita para ser boa”. Os erros vão acontecer, fazem parte da nossa humanidade e sim, nos fazem crescer e perceber onde podemos melhorar. 

“Empoderamento não quer dizer ser poderosa o tempo todo. Quer dizer que, apesar das dificuldades e dos fracassos, você consegue se manter no caminho” – Eilane Santos, psicóloga clínica

Abri esse texto falando da minha síndrome de impostora. E o fiz porque foi só quando precisei mergulhar no tema para esse artigo que percebi, de verdade, o quanto ela me atrapalha. Levei para a terapia e encerro compartilhando que criei coragem e comecei a escrever um projeto, que idealizo há tempos – e que se não der certo, eu não vou ficar muito machucada. Foi um passo pequeno, mas para mim já foi transformador. Te convido a também tentar falar mais alto que a voz da sua impostora. Vamos juntas?

 

Nana Soares Jornalista

Comunicadora especializada em gênero e sexualidade e mestre em Gênero e Desenvolvimento pela University of Sussex (Inglaterra). Trabalha como freelancer em projetos e organizações de impacto social, ama tubarões e Sandy e Junior.

Linkedin Nana Soares | https://www.soaresnana.com/